lunes, 28 de mayo de 2012

Felipe Corrêa - "Da Periferia para o Centro, sujeito revolucionário e Transformação Social"

 
O presente artigo foi escrito como apresentação para o livro “A Concepção Libertária da Transformação Social Revolucionária” de Rudolf de Jong. O livro será publicado pela Faísca Publicações Libertárias em co-edição com a Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ) e será lançado no “I Encontro Libertário: Anarquismo e Movimentos Sociais” a ser realizado no mês de dezembro de 2008 em Fortaleza – CE, Brasil. Para saber mais sobre o livro, entrar em contato com faisca@riseup.net.
É o próprio povo, são os famintos,
são os deserdados os que têm de abolir a miséria.
Ricardo Flores Magón

O CONTEXTO DA A.I.T.
O anarquismo, como ideologia, e, portanto, “um conjunto de idéias, motivações, aspirações, valores, estrutura ou sistema de conceitos, que possuem uma conexão direta com a ação – o que chamamos de prática política”[1]-, propõe a derrubada do capitalismo e suas instituições fundamentais – dentre elas o Estado -, rumo ao socialismo libertário. Portanto, uma reflexão sobre o anarquismo, hoje e sempre, deve considerar este seu caráter ideológico, de busca pela transformação social.
O próprio surgimento do anarquismo na obra de Proudhon, e mais concretamente no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.) – na atuação de Bakunin e outros militantes da Aliança da Democracia Socialista – confirma este caráter.
A estratégia de transformação social proposta por Bakunin e os aliancistas era dupla. Por um lado, estimulavam o fortalecimento dos movimentos sociais da época e sua aglutinação em torno da A.I.T., que associava livremente os explorados em torno de uma base econômica comum, independente de sua ideologia. A força popular da A.I.T. constituía-se como principal meio de se chegar à revolução social. Por outro lado, trabalhavam – por meio da influência da Aliança (primeira organização específica anarquista) – para impulsionar os trabalhadores da A.I.T. à revolução social.
Nesta dupla atuação, que diferenciava o nível político e anarquista da Aliança do nível social e não-anarquista da A.I.T., Bakunin definiu os papéis de cada um destes níveis:
“A Aliança é o complemento necessário da Internacional… – Mas a Internacional e a Aliança, tendendo para o mesmo objetivo final, perseguem ao mesmo tempo objetivos diferentes. Uma tem por missão reunir as massas operárias, os milhões de trabalhadores, através das diferenças das nações e dos países, através das fronteiras de todos os Estados, num só corpo imenso e compacto; a outra, a Aliança, tem por missão dar às massas uma direção verdadeiramente revolucionária. Os programas de uma e de outra, sem serem nada opostos, são diferentes pelo próprio grau do seu desenvolvimento respectivo. O da Internacional, se o tomarmos a sério, também [contém] em germe, mas só em germe, todo o programa da Aliança. O programa da Aliança é a explicação última do [programa] da Internacional.”[2]
Em sua proposta de atuação em níveis diferenciados, Bakunin sustentava que o nível político e o nível social complementavam um ao outro. A estratégia de transformação social revolucionária proposta por ele baseava-se em uma interação dialética do nível político com o social. As forças populares, organizadas de baixo para cima na A.I.T., seriam as verdadeiras forças responsáveis pela revolução social e capazes de levá-la a cabo. As forças anarquistas, organizadas na Aliança, e em permanente contato com a A.I.T., exerceriam a influência necessária, de maneira antiautoritária, garantindo seus objetivos revolucionários. Ao organizar-se como minoria ativa, a Aliança dava força à proposta anarquista, buscando consolidá-la no seio das lutas sociais.
Neste contexto da A.I.T., duas propostas de transformação social revolucionária foram confrontadas. Uma delas, chamada de “centralista”, defendida pelos marxistas, e a outra, chamada de “federalista”, defendida pelos libertários, dentre eles Bakunin e outros membros da Aliança.
Entre as divergências que existiam, e que foram se evidenciando ao longo da história, podemos citar duas, que são trabalhadas de maneira ímpar no texto de Rudolf de Jong. As diferenças em torno do sujeito revolucionário e do caminho para a transformação social. Estas duas diferenças separaram, e ainda separam, em grande medida, duas propostas diferentes de entender a estratégia revolucionária: a anarquista e a marxista.
Rudolf de Jong escolheu para trabalhar todo o pano de fundo desta análise do sujeito revolucionário e da transformação social as relações que definiu como “centro-periferia” que, se por um lado retomam concepções clássicas do anarquismo, por outro nos trazem contribuições relevantes para o anarquismo social e militante de hoje.

RELAÇÕES CENTRO-PERIFERIA
As relações centro-periferia baseiam-se em uma forma libertária de se enxergar as relações presentes em nossa sociedade. Elas estão fundamentadas nas relações de domínio estabelecidas pelos centros em relação às periferias, entendendo que a dominação existe quando uma pessoa ou um grupo de pessoas utiliza-se “da força social de outrem (do dominado), e, conseqüentemente, de seu tempo, para realizar seus objetivos (do dominador) – que não são os objetivos do agente subjugado”[3]. Assim, desde as questões mais complexas como o capitalismo e o Estado, até as relações de poder dentro de um movimento social ou mesmo de uma organização política podem ser analisadas por esta perspectiva. A luta permanente dos anarquistas, que se constituiu classicamente pelo fim das relações de domínio, é colocada por Rudolf de Jong como a luta permanente pelo fim das relações centro-periferia.
Este objetivo norteia a teoria e a prática dos anarquistas. Ao conceber um modelo teórico de transformação social, a busca pelo fim das relações centro-periferia sugere uma reflexão crítica acerca do Estado, do partido, do exército e das posições de direção e/ou vanguarda. Sugere, também, uma definição do sujeito revolucionário, agente privilegiado deste processo de transformação social.
O fim das chamadas relações centro-periferia norteia toda a atuação dos anarquistas em sua luta na busca da revolução social, fato este que já vem se confirmando pela estratégia de transformação social revolucionária adotada pelos anarquistas, desde a A.I.T., ainda no século XIX. É este modelo de luta, da periferia para o centro, que vem distinguindo anarquistas e a grande maioria dos marxistas, na busca por esta transformação. Comparando as estratégias marxista e anarquista para a transformação social, podemos dizer que
“os revolucionários marxistas, os reformistas sociais e, em geral, a maioria dos militantes de esquerda querem sempre usar o centro como um instrumento – e na prática como o instrumento – para a emancipação da humanidade. Seu modelo é sempre um centro: Estado, partido ou exército. Para eles a revolução significa, em primeiro lugar, a tomada do centro e de sua estrutura de poder, ou a criação de um novo centro, para utilizá-lo como um instrumento para a construção de uma nova sociedade. Os anarquistas não desejam tomar o centro; desejam sua destruição imediata. É sua opinião que, depois da revolução, dificilmente haverá lugar para um centro na nova sociedade. A luta contra o centro é seu modelo revolucionário e, em sua estratégia, os anarquistas tentam evitar a criação de um novo centro.”[4]
A partir desta diferença entre anarquismo e marxismo, e do modelo das relações centro-periferia colocado por Rudolf de Jong, podemos refletir sobre duas diferenças fundamentais que vêm separando, desde o século XIX, estas duas formas de conceber a transformação social revolucionária: o entendimento de quem é o sujeito revolucionário e do caminho mais adequado para a transformação social revolucionária.

O SUJEITO REVOLUCIONÁRIO
Uma discussão que vem sendo travada há tempos dentro da corrente socialista revolucionária, sendo esta entendida de maneira ampla, é sobre quem seria o sujeito revolucionário, ou seja, aquele setor da população que teria a responsabilidade e a capacidade de realizar a revolução. Ainda na A.I.T., evidenciou-se uma diferença entre a concepção de Marx e a de Bakunin.
Marx, ao realizar sua análise da história e identificar a contradição evidenciada na luta de classes entre a burguesia e o proletariado, colocava sua expectativa em uma parte específica do proletariado: o proletariado industrial e urbano, que existia em abundância nas regiões mais desenvolvidas economicamente. Marx acreditava que, antes da revolução rumo ao socialismo, que conduziria à ditadura do proletariado, a sociedade deveria passar por uma revolução burguesa, que estabelecesse o capitalismo de maneira plena, desenvolvendo as forças produtivas e criando este proletariado industrial – o sujeito revolucionário que conduziria a sociedade à sua emancipação. Desta maneira, as forças progressistas da sociedade seriam a burguesia (que transformaria as economias pré-capitalistas em capitalismo) e o proletariado (que transformaria o capitalismo em socialismo).
Assim, apesar do conjunto de classes exploradas ser muito mais amplo que este setor do proletariado definido por Marx como sujeito revolucionário, ele não acreditava que outros setores pudessem ser investidos desta função revolucionária. O lumpemproletariado, os camponeses, trabalhadores manuais e as culturas pré-capitalistas não teriam, para ele, um papel revolucionário; muitas vezes, ao contrário, seriam forças conservadoras.
Bakunin trabalhava com um conceito mais amplo e generoso de sujeito revolucionário. Incluía nele, com grande ênfase, os camponeses, concebendo que a revolução não poderia ser realizada, plenamente, pelo proletariado industrial e urbano. A revolução social, que conduziria ao socialismo libertário deveria, necessariamente, contar com a contribuição dos camponeses. Enfatizava Bakunin que:
“A sublevação do proletariado das cidades não é suficiente; com ela teríamos somente uma revolução política, que teria necessariamente contra e1a a reação natural e legítima do povo dos campos, e esta reação, ou unicamente a indiferença dos camponeses, esmagaria a revolução das cidades, como aconteceu ultimamente na França. Só a revolução universal é suficientemente forte para inverter e quebrar o poder organizado do Estado, sustentado pelos recursos das classes ricas. Mas a revolução universal é a revolução social, é a revolução simultânea dos povos dos campos e das cidades. É isso que é preciso organizar, – porque sem uma organização preparatória, os elementos mais fortes são impotentes e nulos.”5 (grifos nossos)
“Que fazer? Não podendo impor a revolução nos campos, é preciso produzi-la, provocando o movimento revolucionário dos próprios camponeses, levando-os a destruir, com as suas mãos, a ordem pública, todas as instituições políticas e civis e a construir, a organizar nos campos a anarquia.”[6]
Ao discutir a revolução social na Europa e dar preferência aos países “periféricos” como Espanha, Rússia e Itália, Bakunin diferenciava-se de Marx, dando, além desta atenção ao potencial revolucionário dos camponeses, ênfase ao “lumpemproletariado” – que aparece descrito abaixo como “proletariado esfarrapado” – em suas reflexões sobre a revolução na Itália.
“Não existe na Itália, como em muitos outros países da Europa, classe operária separada, em parte já privilegiada graças a altos salários, gabando-se inclusive de certos conhecimentos literários, e a tal ponto impregnada das idéias, das aspirações e da vaidade burguesas, que, os operários que pertencem a este meio, só se diferenciam dos burgueses por sua condição, de forma alguma por sua tendência. É sobretudo na Alemanha e na Suíça que existem muitos operários deste tipo; todavia, na Itália, há bem poucos, tão poucos que eles estão perdidos na massa e não têm nenhuma influência sobre ela. O que predomina na Itália, é esse proletariado esfarrapado, dos quais o Srs. Marx e Engels e, em seguida, toda a Escola da social-democracia alemã, falam com o mais profundo desprezo, e bem injustamente, pois é nele, e apenas nele, e não na camada aburguesada da massa operária, que reside, na totalidade, o espírito e a força da futura revolução social.”[7] (grifos nossos)
Rudolf de Jong, ao mapear as relações centro-periferia, retoma estes conceitos do anarquismo clássico que foram expressados por Bakunin e os extrapola, propondo uma série de relações que constituem toda importante base para a concepção do sujeito revolucionário de hoje. Estas relações de dominação – que constituem as relações centro-periferia e que, portanto, nos fazem entender o conjunto de classes exploradas – identificam como explorados os membros das culturas e sociedades completamente distantes do centro e também daquelas que, em contato com o centro, buscam manter sua identidade (fundamentalmente os indígenas). Identificam, ainda, explorados como pequenos produtores, trabalhadores especializados, camponeses, “lumpemproletariado”, desempregados, trabalhadores precários e assalariados, pobres etc., mesmo sabendo que várias destas categorias se sobrepõem. Assim, para ele, todas estas vítimas das relações centro-periferia constituiriam o sujeito revolucionário de hoje.

A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL REVOLUCIONÁRIA
O modelo de transformação social revolucionária proposto pelo anarquismo também diverge amplamente dos modelos derivados do marxismo, sejam eles reformistas ou revolucionários. Desde a A.I.T., a questão entre os meios e os fins permanece a mesma. Isso porque, entre marxistas e anarquistas, geralmente houve certo acordo em relação à crítica do capitalismo e uma aproximação na proposta de sociedade futura. A divergência sempre se deu, e ainda se dá, em relação aos meios de se chegar ao fim desejado. Entre outras coisas, os anarquistas nunca concordaram com o papel do Estado e do socialismo como “período intermediário” (de ditadura do proletariado) reivindicado pelos marxistas.
Para a grande maioria dos marxistas, a revolução passa, necessariamente, pela tomada do Estado e pelo estabelecimento de um período de centralização e ditadura, fato que nunca foi aceito pelos anarquistas. Bakunin, em um prognóstico mais do que certeiro, previa, ainda no século XIX, o que seriam as experiências “socialistas” do século XX. Previa ele que este modelo de transformação social – que Rudolf de Jong chamaria de transformação do centro para a periferia – não conduz à emancipação do povo, mas sim à continuidade da sua escravidão. Isto porque não há como se defender os interesses da periferia – neste caso, o povo explorado – por meio de uma instituição do centro – o Estado.
Bakunin conseguiria antever que, assim que o Estado fosse tomado, ainda que sob justificativa da defesa dos interesses do povo, seria criada uma nova classe de exploradores que continuaria a dominação, ao invés de acabar com ela. Esta “nova classe”, ainda segundo Bakunin, nunca mais abandonaria as posições de privilégio adquiridas. O socialismo como período intermediário, ou a “ditadura do proletariado”, nunca chegaria à sociedade sem Estado. A nova classe no comando do Estado passaria a defender não mais os interesses do povo, mas sim os seus próprios interesses.
Tudo isso porque o problema não está em quem ocupa o Estado, mas no Estado em si. Sabemos que não é suficiente substituir o rei, se a monarquia continua, e o mesmo vale para o Estado. A questão não é questionar quem está no Estado, mas o Estado em si, pois como ele é um pilar fundamental do capitalismo, não é neutro, reproduz e sustenta relações de domínio e exploração em seu seio. Assim,
“(…) nenhum Estado, por mais democráticas que sejam as suas formas, mesmo a república política mais vermelha, popular apenas no sentido desta mentira conhecida sob o nome de representação do povo, está em condições de dar a este o que ele precisa, isto é, a livre organização de seus próprios interesses, de baixo para cima, sem nenhuma ingerência, tutela ou coerção de cima, porque todo Estado, mesmo o mais republicano e mais democrático, mesmo pseudopopular, como o Estado imaginado pelo Sr. Marx, não é outra coisa, em sua essência, senão o governo das massas de cima para baixo, com uma minoria intelectual, e por isto mesmo privilegiada, dizendo compreender melhor os verdadeiros interesses do povo, mais do que o próprio povo.”[8]
A coerência entre meios e fins, fortemente defendida no anarquismo, aponta ser uma imensa contradição querer defender o conjunto de classes exploradas, que é um elemento periférico da sociedade, por meio de uma instituição que é um pilar fundamental do sistema capitalista e da sociedade de classes, ou seja, uma instituição central.
Diferentemente, a luta anarquista pela transformação social revolucionária não passa pela tomada do Estado, mas sim pela mobilização de amplos setores da população para, de baixo para cima, promover a revolução social e abrir caminho rumo ao socialismo libertário. A revolução social, na concepção anarquista, promove uma imediata substituição do Estado pelas estruturas autogeridas e federadas do socialismo libertário, momento em que o poder político é descentralizado e autogerido pelo povo. A nosso ver, o caminho para operar esta transformação social se dá por meio da criação e do desenvolvimento de movimentos sociais, juntamente com a organização específica anarquista, desenvolvendo suas atividades de trabalho/inserção social, produção/reprodução de teoria, propaganda anarquista, formação política, concepção e aplicação de estratégia, relações políticas e sociais, gestão de recursos.
Os movimentos sociais, ao possuírem determinadas características (força, classismo, autonomia, combatividade, ação direta, democracia direta e perspectiva revolucionária), terão condições de aliar-se na luta pela transformação social revolucionária, constituindo uma forma de organização popular ampla, que agregue o maior número possível de movimentos sociais radicalizados, negando a centralização e hierarquia, e afirmando o federalismo e a horizontalidade. O papel da organização específica anarquista é, lado a lado com os movimentos sociais – ou com a própria organização popular – influenciar-lhes o quanto for possível, para que estas características estejam presentes, funcionando como o fermento deste bolo, que se aquece com o calor da luta de classes.
Este modelo de anarquismo foi desenvolvido, entre outros, por Malatesta, que sugere uma transformação social revolucionária neste sentido, da periferia para o centro. Vejamos um resumo deste modelo de transformação.
“Ao povo que quer se emancipar, só resta uma saída: opor violência a violência. Disso resulta que devemos trabalhar para despertar nos oprimidos o vivo desejo de uma transformação radical da sociedade, e persuadi-los de que, unindo-se possuem a força de vencer. Devemos propagar nosso ideal e preparar as forças morais e materiais necessárias para vencer as forças inimigas e organizar a nova sociedade. Quando tivermos força suficiente, deveremos, aproveitando as circunstâncias favoráveis que se produzirão, ou que nós mesmos provocaremos, fazer a revolução social: derrubar pela força o governo, expropriar pela força os proprietários, tornar comuns os meios de subsistência e de produção, e impedir que novos governantes venham impor sua vontade e opor-se à reorganização social, feita diretamente pelos interessados. (…) Devemos fazer com que o povo, em sua totalidade e em suas diferentes frações, exija, imponha e realize, ele próprio, todas as melhorias, todas as liberdades que deseja, na medida em que concebe a necessidade disso e que adquire a força para impô-las. Assim, propagando sempre nosso programa integral e lutando de forma incessante por sua completa realização, devemos incitar o povo a reivindicar e impor cada vez mais, até que ele consiga a sua emancipação definitiva. (…) A propaganda, oral ou escrita, sozinha, é impotente para conquistar para as nossas idéias toda a grande massa popular. É preciso uma educação prática, que seja alternadamente causa e resultado da transformação gradual do meio. (…) Denunciando sempre esta espécie de governo, exigindo sempre a liberdade integral, devemos favorecer todo combate por liberdades parciais, convictos de que é pela luta que se aprende a lutar. Começando a provar a liberdade, acaba-se por desejá-la inteiramente. Devemos sempre estar com o povo; e quando não conseguirmos fazer com que queira muito, devemos fazer com que, pelo menos, ele comece a exigir alguma coisa. E devemos nos esforçar a que aprenda a obter por si mesmo o que quer – pouco ou muito -, e a odiar e a desprezar quem quer que vá ou queira fazer parte do governo. (…) Devemos procurar enfraquecê-lo [o governo] e obrigá-lo a fazer uso dele o menos perigosamente possível. Mas, esta ação, devemos fazê-la sempre de fora e contra o governo, pela agitação na rua, ameaçando tomar pela força o que se exige. Jamais deveremos aceitar uma função legislativa (…) pois, assim agindo, diminuiríamos a eficácia de nossa ação e trairíamos o futuro de nossa causa.”[9]
Esta reflexão sobre a transformação social revolucionária evidencia ainda outra qualidade do texto de Rudolf de Jong. Ele também consegue extrapolar a questão do debate em torno do Estado. É um fato que os anarquistas já discutiram abundantemente suas diferenças com os marxistas em torno do Estado. No entanto, as reflexões, a partir desta lógica das relações centro-periferia, nos dão base para discutir outras questões.
Primeiramente, duas que são citadas pelo autor: o partido e o exército.
Rudolf de Jong expõe, também de maneira ímpar, outra diferença entre as escolas do socialismo, que está em torno da idéia de partido, ou de organização política revolucionária. A concepção de partido leninista, adotada por praticamente a totalidade das organizações marxistas durante e após a Revolução Russa, também evidenciam esta concepção de transformação pelo centro. Lenin, ao desenvolver sua teoria do partido, distorceu a proposta bakuninista de separação dos níveis político e social. Bakunin entendia esta separação da organização anarquista e dos movimentos sociais necessária, porém complementar e dialética, em que havia influências mútuas do político para o social e vice-versa. Lenin, ao pensar esta separação, colocou o nível político, representado pelo partido, acima do nível social, representado pelos “movimentos de massa”, considerando os segundos apenas uma correia de transmissão do primeiro. Esta relação, a partir do modelo leninista, não se constituía mais em uma relação mútua, como desejava Bakunin, mas sim uma relação de mão única, do partido para os movimentos.
A grande diferença entre os anarquistas e os marxistas (principalmente os leninistas) que defendem esta separação entre os níveis político e social, é que os marxistas consideram que o nível político possui hierarquia e domínio em relação ao nível social, o que se confirma quando analisamos sua concepção do partido como “vanguarda do proletariado”. O partido, a partir do momento que se coloca no topo da pirâmide, cuja base são os movimentos sociais, não pode ser outra coisa senão um centro. Quando o partido, constituído em vanguarda, se coloca acima ou à frente dos movimentos sociais, tende a buscar uma transformação social que, ainda que seja revolucionária, vem de cima para baixo, do centro para a periferia.
A proposta anarquista que defende esta separação dos níveis político e social é radicalmente diferente. A concepção de minoria ativa, que sustenta uma relação ética entre os níveis político e social, está em pleno acordo com a criação e o desenvolvimento dos movimentos sociais pela base, da construção da organização popular e da transformação social revolucionária que vai da periferia para o centro.
“É por meio da ética, e somente por meio dela, que a organização anarquista não atua como um partido autoritário (mesmo que revolucionário). A ética do anarquismo, diferente de todas as outras ideologias, sustenta uma posição única de relação entre os níveis político e social. Por este motivo, a ética é absolutamente central a qualquer organização anarquista que queira realizar trabalho com os movimentos sociais. Diferentemente da organização de vanguarda, o nível político organizado como minoria ativa, que atua com ética, não possui relação de hierarquia e nem de domínio em relação ao nível social. Para nós, como enfatizamos, os níveis político e social são complementares e possuem uma relação dialética. Neste caso, o nível político complementa o nível social, assim como o nível social complementa o político.
Ao contrário do que propõem os autoritários, a ética da horizontalidade que funciona dentro da organização específica anarquista se reproduz em sua relação com os movimentos sociais. Quando em contato com o nível social, a organização específica anarquista atua com ética e não busca posições de privilégio, não impõe sua vontade, não domina, não engana, não aliena, não se julga superior, não luta pelos movimentos sociais ou à frente deles. Luta com os movimentos sociais, não avançando nem um passo sequer além do que eles pretendem dar.
Entendemos que a partir desta perspectiva ética de nível político, não existe fogo que não seja aceso coletivamente; não há como ir à frente, iluminando o caminho do povo, enquanto o próprio povo vem atrás na escuridão. O objetivo da minoria ativa é, com ética, estimular, estar junto ombro a ombro, prestar solidariedade quando ela é necessária e solicitada. Por isso, diferentemente da vanguarda, a minoria ativa é legítima.”[10]
Rudolf de Jong também realiza interessantes reflexões sobre as diferenças entre marxistas e anarquistas, na discussão da luta armada. Desde sempre, as duas concepções foram diferentes. Podemos considerar, ainda no seio da Revolução Russa, as diferenças entre o Exército Vermelho, que funcionava com disciplina e hierarquia militares obrigando seus soldados a lutar[11], e o exército insurrecional makhnovista, ou mesmo a luta armada na Espanha de 1936, em que os combatentes eram voluntários e as posições de disciplina e hierarquia radicalmente diferentes.
As próprias posições mais recentes sobre a guerrilha, daqueles que se insurgiram contra os regimes ditatoriais na América Latina, é emblemática. De um lado, descendentes diretos do marxismo propunham o foquismo guevarista como estratégia de luta armada. Organizações no Brasil, na Argentina, no Uruguai etc. optaram por esta estratégia que, se por um lado sustentava uma ação de impacto no combate à ditadura, por outro pecava no apoio popular e na inserção social junto às camadas da população que se propunham a defender. Se por um lado constituía um foco de resistência relevante na luta contra o regime militar, por outro se descolava como uma vanguarda que queria lutar, não com o povo, mas pelo povo. Assim, o foquismo, na perspectiva de Rudolf de Jong, poderia ser pensado como uma tentativa de transformação do centro para a periferia.
Diferentemente, a Federação Anarquista Uruguaia (F.A.U.), que aderiu à luta armada contra a ditadura no Uruguai, realizou uma reflexão que buscava pensar a luta armada, de maneira distinta do foquismo, bastante em voga naquele momento. Em um documento chamado El Copey, a F.A.U. insiste em uma concepção de luta armada em acordo com os princípios anarquistas, concebendo a transformação da periferia para o centro, ou seja, com participação significativa nos movimentos sociais – chamados “movimentos de massas” pelos uruguaios – e colocando a luta armada como mais um esforço revolucionário e não como o principal e único esforço a partir do qual se desencadeariam outros. Em sua reflexão, a F.A.U. colocou:
“Concebemos a luta armada como aspecto fundamental da prática política de um partido clandestino, que atua também com base em uma estratégia harmônica e global, no nível de massas. (…) Tudo parece indicar que a função da guerrilha urbana não é buscar a vitória em um enfrentamento direto, mano a mano, com o exército. (…) Definitivamente, a guerrilha urbana, quando se trata de busca da revolução social, parece ter como função idônea preparar o salto, a passagem qualitativa para outra forma de luta através da qual pode ser conseguida a vitória decisiva no marco urbano, a insurreição. A guerrilha urbana, cremos, portanto, só é legítima como preâmbulo e preparação necessária e imprescindível da insurreição. Processo insurrecional que, claramente, pode ter formas diversas, mas que implica sempre uma participação de certo volume dos setores de massas. (…) Não é necessário esperar que a metade mais um dos habitantes de uma cidade decidam se levantar em armas para fazer uma insurreição. (…) Portanto, quando aludimos a uma série de ações de massas de outro nível, está subentendido que participe o setor mais dinâmico das massas.”[12]
Assim, apesar de a luta armada poder ser realizada pela organização política, ela não se constitui como sua única atividade e nem, muito menos, substitui a necessidade desta organização e de seu trabalho no nível social.
Uma segunda reflexão, que não é colocada diretamente por Rudolf de Jong, mas que pode ser feita a partir de seu texto, é sobre a interação entre as organizações anarquistas e os movimentos sociais. Esta reflexão da transformação pela periferia nos faz crer que, ao estabelecer este contato com os movimentos sociais, os anarquistas devem, em primeiro lugar, buscar movimentos sociais que signifiquem a periferia do sistema em que vivemos, e, em segundo lugar, dentro destes movimentos, buscar contato com as “áreas periféricas”, ou seja, a base e não com a direção.
Para o trabalho social, os anarquistas devem eleger os movimentos sociais mais dispostos a radicalizar, e defender posições práticas semelhantes às suas. Isto é mais fácil, geralmente, nos movimentos sociais em que a luta de classes é mais evidente; movimentos que ainda são pouco institucionalizados, hierárquicos etc. Este raciocínio é fundamental para saber onde as sementes do anarquismo devem ser plantadas e, dentro de cada contexto, quais são as movimentações populares que devem receber a atenção dos anarquistas.
O caso do sindicalismo é um exemplo que deve ser analisado com bastante atenção. O nível de hierarquização e burocratização em que se encontram diversos sindicatos, muitas vezes, pode fazer com que eles sejam terrenos por demais complicados de atuar – utilizando muita energia dos anarquistas e oferecendo poucas possibilidades. No entanto, isso não pode ser generalizado. Há setores sindicais ainda bastante autônomos, combativos e com possibilidade de trabalho em favor do conjunto das classes exploradas. A questão é sempre verificar se o sindicato, ou mesmo o movimento social, é ou não um espaço com estas possibilidades. Se for, merece esforço.
Esta reflexão sobre o terreno mais adequado para plantar as nossas sementes deve sempre ser feita. A experiência vem mostrando que é nos setores mais periféricos que as pessoas possuem mais afinidade com o anarquismo – os setores em que as pessoas têm muito pouco, ou nada a perder.
Quando em contato com os movimentos sociais – e sabemos que muitos deles estão hierarquizados e dominados por uma direção descolada da base – os anarquistas devem sempre se aproximar da base e não da direção. Fruto de outra série de experiências práticas, esta atuação da periferia para o centro dentro dos movimentos sociais indica que os esforços das organizações anarquistas devem se dar sempre de baixo para cima, buscando construir relações com os militantes de base e, por meio de tendências ou outros agrupamentos ou entidades, fazer com que a direção seja ouvida pela ampla maioria da base, que pode exigir maior participação, democracia direta etc. Assumir posições de direção nos movimentos sociais pode e deve ser objeto de grande preocupação entre os anarquistas, pois, quando isso acontece, pode-se, mesmo que sem querer, estar insistindo em uma transformação do centro para a periferia, com conseqüências funestas para a luta.

PENSANDO AS RELAÇÕES CENTRO-PERIFERIA HOJE
Finalmente, podemos afirmar que o anarquismo, como proposta ideológica de transformação social revolucionária, teve, e ainda tem, muito a oferecer ao campo do socialismo. Esta reflexão sobre a transformação social passa, inevitavelmente, por uma discussão acerca da luta de classes e de seus atores na sociedade de hoje.
Nitidamente, a contradição clássica entre a burguesia e o proletariado não dá conta das relações de dominação de hoje. Ao refletirmos sobre a questão da classe no Brasil, podemos relacionar a classificação centro-periferia de Rudolf de Jong com uma série de experiências que apontariam para novos e potenciais sujeitos revolucionários. Os sem-terra, sem-teto, desempregados, catadores de material reciclável, indígenas, camponeses, pequenos produtores etc., foram (e algumas vezes ainda são) classificados como “lumpemproletariado”, tendo negado o seu potencial revolucionário. No entanto, é um fato que estes sujeitos despontam como atores importantes e fundamentais nos movimentos sociais e nas lutas de nosso tempo. Juntamente com trabalhadores e estudantes, podem constituir hoje esta importante aliança de classe em torno do projeto revolucionário.
Para este projeto, o conjunto de classes exploradas tem condições de operar, a partir dos movimentos sociais, transformações sociais significativas. O modelo anarquista de transformação social revolucionária possui aspectos bastante relevantes que podem ajudar a conceber esta transformação.
1. Trabalhar as transformações sociais por fora do Estado, que não deve ser utilizado como um meio, nem como propõem os reformistas, nem como propõem os revolucionários.
2. Reforçar a idéia anarquista de defender a ideologia dentro dos movimentos sociais e não o contrário, quando os movimentos funcionam como correia de transmissão de um partido ou uma ideologia determinada.
3. Sustentar uma interação complementar e dialética entre a organização política e os movimentos sociais (níveis político e social), em que há desenvolvimento mútuo e não há hierarquia e domínio.
4. Reconhecer a inevitabilidade do enfrentamento para a transformação revolucionária, refletindo, de maneira estratégica e tática, como e quando a violência deve ser utilizada, ainda que seja sempre como resposta, e, portanto, uma forma de autodefesa.
5. Conceber formas de atuação que dêem espaço para o envolvimento das bases, lutando com o povo e não por ele ou à frente dele.
6. Eleger os melhores espaços para atuar, buscando movimentos que agrupem militantes que sofrem de maneira mais dura os efeitos do capitalismo e que podem ser grandes aliados na luta de classes.
7. Buscar as bases dos movimentos sociais, construindo um projeto de organização popular que vá de baixo para cima, ou da periferia para o centro, visando à transformação social revolucionária.
Novembro de 2008

Notas:
1 FARJ. Anarquismo Social e Organização. São Paulo/Rio de Janeiro: Faísca/FARJ (no prelo).
2 Mikhail Bakunin. “Educação Militante”. In: Conceito de Liberdade. Porto: Rés Editorial, s/d pp. 151-152.
3 Fabio López López. Poder e Domínio: uma visão anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2001 p. 83.
4 Rudolf de Jong. A Concepção Libertária da Transformação Social Revolucionária.
5 Mikhail Bakunin. “Necessidades da Organização”. In: Conceito de Liberdade, p. 137.
6 Mikhail Bakunin. “Os Camponeses”. In: Conceito de Liberdade, p. 119.
7 Mikhail Bakunin. Estatismo e Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003, pp. 29-30.
8 Ibidem. p. 47.
9 Errico Malatesta. “Programa Anarquista”. In: Escritos Revolucionários. São Paulo: Imaginário, pp. 13-23.
10 FARJ. Anarquismo Social e Organização.
11 Sabe-se que no Exército Vermelho os desertores eram mortos e que, quando isso não funcionava mais, os bolcheviques ameaçavam de morte as famílias dos combatentes, em caso de deserção.
12 FAU. El Copey. A utilização da palavra “partido” aqui é feita da mesma maneira que o fez Malatesta, que por partido referia-se à organização específica anarquista.

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